Dúvidas da Europa atual sobre Pelé e os mil gols são pura ignorância e colonialismo


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Dúvidas da Europa atual sobre Pelé e os mil gols são pura ignorância e colonialismo
Dúvidas da Europa atual sobre Pelé e os mil gols são pura ignorância e colonialismo-2
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Jamie Carragher foi um grande jogador. Tinha habilidade para distribuir bons passes e vigor para aguentar o tranco de fortes divididas. É uma lenda do Liverpool (o único clube que já defendeu profissionalmente). Já faz um tempo, trabalha como comentarista na TV inglesa. E foi calçando um elegante sapato, ao invés de chuteiras, que pisou na bola como se fosse um pereba. Em tom debochado, Carragher indicou que o número gols marcado por Pelé, superior a mil, é uma mentira.

O tom jocoso de sua afirmação, que veio na esteira da pergunta quase retórica feita por Gary Neville (ex-Manchester United), não demonstra somente falta de conhecimento de Carragher. Representa o orgulho de ser ignorante, no sentido de não ter conhecimento sobre o que está falando, além de mais um episódio na saga infinita que mostra como o Europeu olha apenas para o seu próprio umbigo quando traça linhas de grandeza na história do futebol.

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O debate surgiu, desta vez, porque no último fim de semana Cristiano Ronaldo chegou à marca de 807 gols oficiais marcados em sua carreira, o que lhe conferiu a liderança máxima no ranking de maiores goleadores da história segundo os critérios da FIFA.

Os três gols anotados sobre o Tottenham, na Premier League, fizeram o atual camisa 7 do Manchester United superar o tcheco Josef Bican neste ranking que possui a profundidade de uma poça espalhada pelo chão. De acordo com este mesmo ranking da FIFA, Pelé estaria na 5ª posição.

O futebol não começou ontem

Pelé

Getty Images

Tanto o legado de Pelé perante o jogo de futebol, quanto o tamanho de suas marcas individuais, não foram ironizadas apenas por Carragher ou pela imprensa britânica. Acontece toda a hora, muitas vezes também na Espanha, com o mantra insistente dos europeus de que Messi seria o “maior jogador de todos os tempos”. Sacrificaram até um animalzinho, uma cabra, para emplacarem tal argumento de forma “viral” neste nosso ambiente de redes sociais.

Cabra, em inglês, é goat. E se você acompanha futebol nos últimos anos, já viu por aí o termo GOAT ser relacionado a Messi ou Cristiano Ronaldo. Trata-se de um acrônimo fanfarrônico para “Greatest Of All Time”, o Maior de Todos os Tempos. E dizer que um deles é maior que Pelé só não é mais errado do que sacrificar uma criaturinha inocente, que nada tem a ver com isso tudo.

Messi ou CR7 podem até ser melhores do que um dia foi Pelé, afinal de contas a ciência evoluiu muito nas últimas décadas e forma atletas de nível cada vez melhor. Amanhã é possível que vá formar gente que venha a ser melhor que o argentino ou o português. Mas para serem maiores que o Rei do Futebol, cada um teria que ter pelo menos duas Copas do Mundo para se matricularem nesta discussão – e não estamos nem sendo rigorosos, colocando três títulos mundiais, já que em 1962 Pelé esteve lesionado na maior parte daquela conquista.

Frieza nos números não conta esta história

É preciso conhecer o contexto, a história, não apenas números frios. Se você olhar apenas as estatísticas de uma só partida, pode acertar muito do que aconteceu ali (quem teve mais posse de bola, finalizou mais etc.), mas não são os números que vão contar em termos absolutos como foi este jogo. Quando analisamos a história do futebol a situação é parecida.

Na época de Pelé, amistosos eram coisa levada a sério. E muito mais difíceis do que duelos contra, por exemplo, a seleção de Luxemburgo, contra quem Cristiano Ronaldo marcou seu mais recente hat-trick com a seleção portuguesa (nota: Luxemburgo tem uma extensão territorial de 2.586 km², sendo menor do que o menor município do estado de Minas Gerais, que é Santa Cruz de Minas com seus 3.565 km²).

O Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha, especialmente, rodavam o mundo em amistosos contra grandes equipes porque todos queriam ver aqueles que eram os grandes astros do futebol mundial daquela época. Times da Europa, que encheram o Santos de propostas para terem o Rei, também pagavam muito para verem o maior jogador de todos os tempos em ação.

Pelé no Santos, anos 1970

Arquivo Santos FC

O site The Athletic relembrou um pouco deste peso ao citar o hino do Olympiacos, da Grécia, um dos clubes mais vitoriosos de seu país, cujo principal feito esportivo incluído em seu hino oficial foi ter vencido o Santos de Pelé em amistoso realizado em 1961. Canta a letra: “Todos tremem quando escutam o som de seu nome, Pelé e Santos ainda lembram de seu nome”. Evidente que o Olympiacos não é uma potência europeia, mas além de ser gigante em seu país o hino dos gregos são um retrato do quanto os amistosos valiam e eram importantes naquela época.

Os gols de Pelé na enorme parte de seus amistosos valeram sim, e foram feitos em partidas muitas vezes bem mais difíceis e disputadas do que, por exemplo, um Barcelona vs Osasuna.

Os estaduais, onde Pelé enfileirou gols, também merecem atenção especial pelo peso histórico, já que por desconhecimento dos estrangeiros também são ignorados. Lembremos que, por exemplo, o Paulistão de 1958 contou com um total de 10 jogadores campeões do mundo – inclusive um representante da Portuguesa, o grande Djalma Santos – e a atual Premier League, na qual comenta Carragher, tem apenas cinco atletas campeões do mundo por suas seleções.

Pensamento eurocentrista

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Quase na mesma época em que Pelé marcava gols em amistosos importantes, um amistoso entre Wolverhampton e Honved fez o clube inglês unir a torcida de seu país, motivados pela vingança de uma histórica derrota de sua seleção em amistoso contra os húngaros, no ano de 1954. Após a vitória neste jogo amistoso (olha a palavra se repetindo!) os ingleses classificaram o Wolverhampton como “campeão do mundo”. Um absurdo megalomaníaco, claro, destes que pelo visto não acabaram. Absurdo tão grande que acabou motivando a criação do que hoje é a Champions League.

Listamos aqui alguns argumentos para falarmos sobre a postura absurda de Carragher e de parte da imprensa europeia em relação a Pelé (o maior jogador da história do futebol) e seu legado. Mas o que encerra este texto é o ponto mais importante: eles desconsideram Pelé não apenas pelo efeito do tempo, mas porque Pelé não jogou na Europa. Um suco de colonialismo.


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